terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Jorge de Lima, esse grande desconhecido





Jorge de Lima é um dos maiores poetas em língua portuguesa. Não o conhecia, senão pelo nome e fama, até um mês atrás, quando o encontrei na prateleira empoeirada de um sebo na Rua do Príncipe.


Na faculdade cheguei a folhear uma edição antiga, acho que dos anos 50, de suas obras completas. Mas não consegui ir muito longe. O preconceito pelo teor catolicista de muitos dos seus versos me fez largar a empreitada. Talvez fosse jovem demais para Jorge de Lima.


Agora, passados 19 anos desse primeiro (des)encontro, que maravilha poder desfrutar Jorge de Lima. Que dádiva ter nascido no Brasil para poder ler o poeta no original. A Invenção de Orfeu é um dos mais grandiosos projetos literários da história da literatura. Digo sem medo de errar e com o aval de parcela significativa da crítica. Ler Jorge de Lima é fundamental para compreendermos o papel do homem na contramão desse inescrupuloso processo civilizatório. O contato com a poesia do mestre alagoano nos faz sentir arrastados pela correnteza em direção a uma queda d'água imensa, inescrutável e inevitável. Cair no abismo é apenas um dos muitos prazeres que sua leitura proporciona.


Caiam nesse abismo. Vale a pena. É apenas o menor dos prazeres.


De "A invenção de Orfeu"


XXVI


Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.


Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.


Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.


E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Trótsky, esse grande espírito da floresta

                                                               Sempre estive mais próximo de Trótsky do que de Lênin, Stálin & Cia. A minha linhagem, e acho, presunçosamente, que a de Maiakóvski também, sempre foi a de Trótsky. Mesmo comandando o colossal exército vermelho durante a guerra civil, o velho (ainda que jovem, à época), nunca se deixou levar pela tentação ditatorial de assumir as rédeas da revolução - infelizmente, com efeito nefasto para centenas de milhares de pessoas, Stálin as assumiu depois.


Trótsky, além de grande estrategista e teórico da revolução, era um amante das artes, sobretudo da literatura. É dele, em parceria com o poeta Francês André Breton (o meu predileto), um dos mais instigantes estudos sobre o surrealismo. O velho sempre se manteve firme na defesa dos princípios da revolução, mas nunca apagou a chama libertária que ardia em seu estômago como uma úlcera. Escrevi o poema abaixo após a leitura de uma de suas incontáveis biografias. Mais especificamente, o volume que relata a sua luta contra Stálin e o posterior expurgo.






LEON DAVIDOVICH BRONSTEIN




Eu poderia escrever-te versos, meu caro Leon.
Mas toda a grandeza de uma epopéia seria mentirosa.


Os mujiques saberiam. Os cossacos galopariam pelas estepes
arrastando o teu busto em desgraça.


Em meus sonhos com Lênin há sempre uma multidão de mortos a te seguir.


Stálin deixou-nos um legado de perdas, o medo como ciência.
O silêncio dos exilados, as sombras na janela...


Os mortos dormem agora sobre uma ravina de flores.


Já não ouso escrever a elegia que mereces, Leon.
Um epitáfio doce como uma náusea que procria.
Queria apenas saber do teu espírito velho de junco,
musgo de carvalhos centenários.


Dorme agora, Leon.
Este sono, ainda que tardio,
talvez restitua o teu lugar nas coisas. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ted Hughes e Sylvia Plath: a vida naufragando

Quando Ted Hughes e Sylvia Plath se casaram, em 16 de Junho de 1956, a vida em comum parecia apenas o início de uma deslumbrante e fértil convivência. Inteligentes, jovens, (bons) poetas, tudo conspirava para qualquer coisa próxima de um futuro magnífico.

Mas havia a vida e seus fantasmas insistindo em existir. E eles logo dariam as caras naquela promessa de deslumbre. Ted, Inglês típico, sem grandes aspirações a não ser lecionar e escrever seus poemas lúgubres. Gabava-se de ter apenas algumas poucas peças de roupa no armário. Não precisava de muita coisa além de uma calça de brim e um velho e surrado paletó de tweed.

Sylvia, obcecada por uma carreira que levasse seu nome para além do Atlântico Norte, em primeiro lugar, e depois, para o outro lado do Canal da Mancha. Influenciada pela mãe, viva, que a queria famosa e rica; e pelo espectro do pai, morto.  Ela tinha apenas oito anos quando ele partiu. O "ilustre pai morto" e uma certa "americanidade ansiosa" de Sylvia Plath, foram os principais "fantasmas" na vida dos poetas. 

"Massacrada por seus padrões de excelência e ambiciosa além da conta, ela (Sylvia) seria prisioneira de uma ansiedade sem cura, escrava do seu medo de errar, vítima inevitável do terror de não corresponder às expectativas de que se tornara objeto", define Leonardo Fróes na nota introdutória ao excelente "Cartas de Aniversário", obra póstuma de Ted Hughes. 

Após sete anos de casamento, muitas brigas, vários poemas e uma filha, Sylvia suicidou-se ligando o gás e enfiando a cabeça no forno de um fogão velho. Grupos de feministas, defensoras de uma moral banguela, vieram em defesa da memória de Sylvia, acusando Ted de assassino, marido infiel, dentre outras tolices. Os ataques recrudesceram, sobretudo depois do suicídio de Assia Wevill, mulher com a qual Ted se casara após a morte de Sylvia, alguns anos depois.

Durante todos esses anos, Ted Hughes silenciou. Em 98, ao descobrir um câncer, Ted enviou para publicação uma coletânea de poemas intitulada "Cartas de Aniversário". No livro, em poemas magistrais, Ted relata as muitas dores e algumas delícias no casamento com Sylvia. Em um dos poemas, Ted fala sobre a obsessão pelo suicídio (Sylvia já havia tentado se matar em 1953): "...não entendia ainda/ que a morte a debater-se de um lado para o outro/ dentro de sua cabeça, tinha de pousar em algum lugar."

Em outro poema, Ted relata a experiência do casal em consultar espíritos através da "brincadeira do copo". A certa altura, Sylvia pergunta ao espírito se eles serão famosos, no que o espírito responde: "A fama virá. Especialmente para você./ A fama é inevitável. E quando ela vier/ você já terá pago por ela com a sua felicidade,/ o seu marido e a sua vida."

Em processo de naufrágio, por muito pouco Sylvia não levou Ted. Não há saída para os que se apoiam nos naufragados. Não há poesia que nos ajude a libertar um ser "naufragando-se".



CARTAS DE ANIVERSÁRIO
Ted Hughes
Ed. Record
399 pg
R$ 9,90

http://bit.ly/o1z2DC

sábado, 17 de setembro de 2011

O Divisor


Continuo pensando em você - o que é ridículo.
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu os Stones;
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem.
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou,
mesmo que eu não possa ser o que sou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa
que eu teria jogado sobre você - havia apenas
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia,
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar
e não se preocupar, e aquilo
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete
não senti nada além de uma punhalada
de dor me dizendo o que era,
e não posso dizer para você, nem uma palavra.


(Edwin Morgan, poeta escocês.
1930 - 2010)
*Ilustração: caricatura do poeta.



terça-feira, 24 de maio de 2011

VAN GOGH - Poema de Marcus Accioly

Ó Van Gogh, cortei a tua orelha
e assei a tua mão. Quis o destino
que eu andasse contigo, de parelha,
por isso entrei no rol dos assassinos.

Não sei pintar, mas ouço a cor vermelha,
ouço o tom do amarelo desatino,
ouço o traço de fogo da centelha
do teu pincel e vejo o som dos sinos.

Tenho os teus olhos nos ouvidos. Só
dissequei tua vida até o pó
para que o pó voltasse a ser caminho.

Depois que dei o tiro no teu peito,
vivo de vinho e sangue satisfeito:
ébrio de sangue e bêbado de vinho.

(Marcus Accioly. In: Daguerreótipos)

O amor, este belo e cruel paradoxo



O TORRÃO E O SEIXO

"O amor jamais a si quer contentar,
não tem cuidado algum com o que é seu;
sacrifica por outro o bem-estar,
e, a despeito do inferno, erige um céu."

Esse era o canto de um torrão de terra,
pisado pelas patas da boiada;
mas um seixo, nas águas do regato,
modulava esta métrica adequada:

"O amor somente a si quer contentar,
atar alguém ao próprio gozo eterno,
sorri quando o outro perde o bem-estar,
e, a despeito do céu, ergue um inferno."

William Blake (1757-1827)

*A ilustração desse post foi feita pelo próprio Blake, para a primeira edição do seu "The marriage of heaven and hell".

segunda-feira, 25 de abril de 2011

As palavras sabem doer

A despeito da crítica, sobretudo a mais identificada com um certo bairrismo provinciano, acho Alberto da Cunha Melo um poeta irregular. Fraco no início, excepcional da metade para o fim de sua carreira literária. Deixou um legado de grandes poemas para a língua portuguesa. Além disso, todos os que o conheceram são unânimes em defini-lo como uma figura humana solidária, afetuosa e de uma generosidade ímpar.

Relendo agora a colossal antologia "Pernambuco, terra da poesia", editada por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, me deparo com Dual, poema belíssimo, onde Alberto abre o seu inventário de mortes possíveis. Como o poema é longo, deixo para degustação apenas algumas dessas mortes.

MORTO PELO MUITO

O mais, o mosto,
o gás de uma montanha
de laranjas apodrecidas;
e pelo pouco,
o bago disputado
em soluços nos calabouços;

MORTO PELA FÊMEA

que me pede uma jantar
 e uma boa lembrança
e talvez peça muito;
e, pela outra
que me pede a eternidade
e talvez peça nada;

MORTO PELA VIRTUDE

essa tanga de velha
e desgastada platina;
e pelo pecado,
a notícia da única
e inexplicável
humildade de Deus;

(Alberto da Cunha Melo)